A Verdadeira História da Família Fonseca Galhão

Blogue cacofónico mas não escatológico sobre a mítica história de uma família portuguesa, com certeza.

segunda-feira, outubro 16, 2006

O jovem investigador aproximou-se do púlpito, ajustou o microfone, sorriu para uma rapariga estrangeira na plateia e começou a falar, depois de demoradamente saudar todos os presentes, obedecendo a uma estranha hierarquia de importância.
"A estricnina, um dos mais antigos venenos conhecidos, é um alcalóide que se encontra em diversas plantas estrícneas, principalmente na noz vómica e na fava de Santo Inácio."
César entrou, procurou lugar num dos últimos bancos da sala e sentou-se.
"Apesar de se suspeitar (não ficaria melhor pensar?) que a noz vómica foi introduzida na Europa pelos Árabes, só se tem a certeza de ser conhecida na Alemanha no século XVI (descrição de Valerius Cordus em 1540), sendo principalmente usada como veneno para ratos e outros animais, mas também como medicamento.
As fortes propriedades tóxicas desta planta foram reconhecidas por Bauhin pouco tempo depois e em 1676 Wepfer provocou o tétano estrícnico com a noz vómica.
Nos séculos XVII e XVIII foi pouco empregue. Só quando a estricnina foi isolada a partir da fava de Santo Inácio por Pelletier e Caventou em 1818, a brucina no córtex de Strychnos nux-vomica (1819) e na noz vómica (1824) é que se começaram a conhecer e a estudar melhor estes alcalóides. No entanto, apesar de ter sido isolada a partir da fava de Santo Inácio, a fonte comercial da estricnina é a noz vómica.
Hoje em dia ainda é utilizada como pesticida, sendo uma fonte de envenenamento acidental para crianças e animais domésticos."
Enquanto lutava para não adormecer, César observava o estranho grupo de pessoas que preenchia a sala: um jovem com cara de turista que chegou ligeiramente atrasado, um indivíduo com ar monárquico sentado na mesa do júri, um barbudo com aspecto de emigrante em Inglaterra, uma jovem de cabelo encaracolado, um médico legista (o que é que ele estará aqui a fazer?)...
Foi então que Mónica entrou.
"FAVA DE SANTO INÁCIO
A fava de Santo Inácio é obtida a partir de Strychnos ignatii Berg. (Fam. Logániaceas). Esta planta é originária das Filipinas e contém dentro do seu fruto 10 a 20 favas de forma irregular.
Só foi conhecida na Europa em 1669, por intermédio de um padre jesuíta, Camelli de seu nome, que lhe deu o nome de fava de Santo Inácio (Faba sancti Ignatii) em honra do fundador da Ordem."
O palestrante hesitou, olhou durante escassos décimos de segundo para o inevitável decote de Mónica, sorriu enigmaticamente (em que é que estaria a pensar?) e continuou calmamente o discurso depois de piscar o olho à jovem estrangeira...
"O envenenamento por estricnina é mais comum em veterinários e nas pessoas associadas a actividades agrícolas, continuando a ser encontrada como causa de envenenamento acidental e intencional de cães e, menos frequentemente, de outras espécies animais..."
César já não ouvia nada. Porque é que Mónica havia insistido tanto em encontrar-se com ele num lugar público e discreto?
- Olá mano.
- Não me chames assim.
(Não se pode dizer que o decote de Mónica fosse uma escolha sensata para quem pretendia um encontro discreto)
- Mas afinal o que é que tu queres? Porque é que me mandaste vir aqui?
- Calma César. Relaxa e ouve a conferência, pois estamos à espera de uma pessoa.
- Quem?
- Ainda não te posso dizer.
"A estricnina liga-se fracamente às proteínas plasmáticas e, uma vez no sangue, distribui-se rapidamente por todo o organismo, tendo especial afinidade pelo sistema nervoso. Esta distribuição do tóxico é tão rápida, que após a administração intravenosa em animais de experimentação, o equilíbrio entre o sangue e o compartimento superficial é atingido em menos de 5 minutos.
É metabolizada no fígado por degradação enzimática no sistema microssomial hepático, seguindo o seu metabolismo uma cinética de primeira ordem."
A porta da sala abriu-se novamente e ela entrou. Embora se notasse que a barreira dos 40 já tinha sido ultrapassada há mais anos do que ela desejaria que se notasse, a sua pose altiva e as roupas elegantes tornavam-na estranhamente atraente.
Quando a viu, Mónica esboçou um sorriso (que saiu amarelo), engoliu em seco e acenou discretamente. Após uma rápida troca de olhares, a estranha apontou o queixo para César e, enquanto se sentava no meio dos dois neo-irmãos, dirigiu-se a Mónica:
- É este?
- Sim.
- Pensei que fosse mais alto. Tens a certeza?
- Sim.
- Também não parece muito esperto... mas a responsabilidade é tua!
- Mas afinal o que é que se passa aqui?! - a voz de César elevou-se ligeiramente e algumas dezenas de pescoços segurando faces incomodadas rodaram na direcção do estranho grupo.
- Shhhhhhh!
- Esteja quieto, não se mexa e sobretudo não atraia as atenções. - a voz autoritária com que a desconhecida se dirigiu a César não deixava margem para veleidades - Coloque este anel e saia imediatamente atrás de mim. O meu nome é Sara e não quero mais perguntas.
Meses mais tarde César haveria de perguntar a si próprio porque raio é que naquele momento decidiu obedecer e seguir Sara. Tinha sido claramente uma das decisões mais infelizes da sua vida...
Foi com uma estranha coordenação, como peças de dominó a funcionar ao contrário (levantando-se para endireitar a peça seguinte) que Sara, César e Mónica (por esta ordem) se levantaram, abandonaram resolutamente a sala e seguiram em passo acelerado e sem pronunciar qualquer palavra para o exterior do edifício.
No exterior aguardava-os uma limousine de vidros fumados, cuja porta entreaberta era segurada por um Ambrózio de bigodes e cabelos brancos com todos os dentes de ouro.
- Lassen sie uns gehen! Jetzt! - vociferou Sara, dois segundos antes de arrancarem a alta velocidade pelas estreitas ruas da cidade e de César perceber com preocupação que no banco de trás da viatura também estavam dois indivíduos que poderiam perfeitamente pertencer aos quadros da selecção angolana de wrestling.